Muitos estão ignorando as questões fundamentais para se dedicar a projetos e ideias mirabolantes, que potencialmente tem pouco para contribuir para a melhoria do transporte público urbano. Nas últimas reuniões, publicações, seminários e eventos que participei, ficou evidente que muitas das discussões estavam associadas a uma realidade muito diferente daquela que eu vivencio no dia a dia da NTU. Em várias ocasiões, políticos, técnicos e leigos debatiam com muito ardor e eloquência toda a gama de soluções tecnológicas, que eles acreditam ser apropriadas para superarmos a crise da mobilidade urbana. Em particular, posso nomear “Veículos Autônomos” e “Big Data” como os assuntos mais discutidos nos últimos tempos.
Apesar de reconhecer a suma importância da discussão e do debate voltado ao avanço, é preocupante perceber que pouca ou nenhuma atenção é dedicada para compreender a viabilidade ou mesmo a inserção no contexto brasileiro. No caso de “Big Data”, que é um conceito ainda bastante amplo da utilização de várias bases de dados para extrair padrões de comportamento e assim gerar informações e conhecimento para atender as necessidades atuais e futuras da população urbana, muitas empresas de tecnologia têm insistido em transmitir a imagem de que em um futuro próximo, seja ele em 10 ou 20 anos, tudo funcionará perfeitamente como nos livros e filmes de ficção científica. Sem qualquer exceção, não tive a oportunidade de ouvir pessoas sensatas que expusessem a necessidade de investir, primeiramente, na estruturação e capacitação do servidor público municipal, que é o ator fundamental na implantação de inovações. Muito menos tive acesso a qualquer relato ou proposta de estruturação de mecanismos para a sustentação financeira de toda a tecnologia a ser implantada em “Big Data”. Reflexões e constatações em relação aos “Veículos Autônomos” podem ser praticamente as mesmas.
As cidades precisam de ações que garantam imediatamente o funcionamento dos serviços básicos e, entre eles, é inquestionável que o transporte público carece de um presente antes de sonhar com um futuro inexequível. Pouco adianta implantar todos os sistemas de controle do movimento de pessoas e veículos em um prédio luxuoso com imensas telas, se os ônibus continuam lutando por espaço ao longo de todo o percurso da viagem diária de milhões de brasileiros. Muito menos importa gastar bilhões de reais para “eletrificar” os ônibus e assim eliminar a emissão de poluentes que eles produzem, se os automóveis particulares continuam a rodar livremente e transportando apenas um passageiro.
Mesmo correndo o risco de ser repetitivo e insistente, devo reafirmar que precisamos focar nos fundamentos. É importante dizer que esses fundamentos são os mesmos defendidos ao longo dos últimos 30 anos de existência da NTU, mas infelizmente não há resultados amplamente consolidados em três temas específicos. São eles: 1) Priorização do Transporte público, que é simplesmente o ato de dedicar espaço para o coletivo, visando dar velocidade, confiabilidade, conforto e eficiência para a parcela da sociedade que realmente precisa; 2) Implantação de fontes de custeio para reduzir as tarifas, pois transporte de qualidade é caro em qualquer lugar do mundo e no Brasil não é diferente; e 3) Revisão, controle e fiscalização das gratuidades, que se tornaram um problema que perpetua a injustiça social do usuário do ônibus pagando a conta no final das benesses concedidas por outros. Esses temas já foram debatidos exaustivamente nos quatro cantos do país e em casos isolados há exemplos de que ações fundamentais dão resultados. Todavia, não podemos mais viver de iniciativas isoladas e que não são contínuas. Muito menos precisamos de discursos nos dizendo que tudo vai ser feito, mas depois de algum tempo nada de concreto acontece.
Obviamente, o futuro não pode esperar, mas ele depende tanto da conscientização quanto das ações necessárias para estabelecer os fundamentos de uma mobilidade urbana sustentável por meio do transporte público de qualidade. À medida que essas ações fundamentais transformarem positivamente a realidade atual, serão maiores as chances de adoção de novos sistemas, tecnologias, conceitos. Caso contrário, estaremos desperdiçando tempo e muito dinheiro, que infelizmente não temos em grande abundância.